quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Vínculos entre o conto popular e a literatura infantil.

Vale a pena tentar apontar alguns pontos que, em nossa visão, poderiam aproximar as narrativas populares da literatura para crianças.
No plano da expressão, do discurso (ou do significante), sabemos que os contos populares sobreviveram ao longo dos séculos de boca em boca, transmitidos por bardos, menestréis e contadores de histórias. Estes, invariavelmente, recorriam a um discurso conciso, a uma linguagem marcada pela expressão oral, fórmulas verbais pré-fabricadas, ditados, frases feitas e a um vocabulário popular e acessível, tendo em vista a comunicação clara e direta com a platéia.
Encontraremos situação análoga na maioria absoluta das obras destinadas ao público infantil: textos concisos, marcados pela oralidade, utilizando vocabulário familiar e construídos com a intenção de entrar em contato com o leitor.
Da mesma forma, no plano do conteúdo, muitos pontos de contato unem os contos populares à literatura infantil. Vamos enumerar apenas alguns deles:
1. A recorrência do elemento cômico. O riso, o deboche, a alegria e o escárnio como revide aos paradoxos contrapostos pela existência;
2. O uso singularmente livre da fantasia e da ficção, muitas vezes como forma de verificação ou experimentação da verdade;
Estes dois primeiros itens, para Mikhail Bakhtin, são índices das mais arcaicas tradições populares.
3. Personagens movidos muito mais por seus próprios interesses, pelo livre arbítrio, pela aproximação afetiva, pelo senso comum, pelos sentidos, pela empatia, pela visão subjetiva, pela busca da felicidade (a moral ingênua referida por André Jolles) do que por uma ética geral, pré-estabelecida, racional, abstrata, uniforme, objetiva, imparcial e impessoal, que pretende determinar, a priori, o certo e o errado. Na literatura infantil, a moral ingênua reaparece regendo personagens que vão de Emília de Lobato e Raquel de A bolsa amarela de Lygia Bojunga ao Menino maluquinho de Ziraldo, parentes, sem dúvida, dos também transgressores e inesperados Juca e Chico, Pinóquio, Alice e Peter Pan;
4. Certos temas e enredos tradicionais remanescentes, ao que tudo indica, de imemoriais narrativas de iniciação, e que poderiam, mesmo que precariamente, ser rotulados como “a busca do auto-conhecimento ou da identidade” (é recorrente em numerosos contos de fadas. Na literatura infantil, surge em obras que vão de Pinóquio e As aventuras de Alice no País das Maravilhas a A bolsa amarela e o Homem que soltava pum ou a “luta do velho contra o novo” (basta lembrar de contos populares como A Branca de Neve e de obras como Peter Pan e, por que não, As aventuras de Alice no País das Maravilhas, A bolsa amarela e o Homem que soltava pum);
5. O uso livre de personificações e antropoformizações;
6. A possilbilidade da metamorfose;
7. As poções, adivinhas, instrumentos e palavras mágicas;
8. Histórias apresentando um caráter iniciático, nas quais o herói parte, enfrenta desafios (é engolido por um peixe, perde a memória, vê-se transformado num monstro etc.) e retorna modificado;
9. Imagens recorrentes como vôos mágicos, monstros, oxímoros etc;
10. O final feliz. Este recurso, presente em inúmeras narrativas populares, é considerado por muitos um índice de alienação. Na verdade, este expediente, utópico por natureza, parece estar enraizado em certas concepções arcaicas como as que preconizam a renovação periódica do mundo (o “eterno retorno”). Por este viés, tudo no mundo é fecundado, nasce, cresce, prospera, decai, apodrece, morre e renasce. Em outras palavras, tudo, no fim, acaba voltando à pureza original, portanto, no fim, tudo dá certo. “Se não deu certo”, diz o ditado popular, “é porque ainda não chegou ao fim”.

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